É a 12ª edição da Mostra de Tiradentes em São Paulo. Muita coisa aconteceu de 2013, primeira edição paulista da Mostra, para cá. Novos diretores e novas diretoras surgiram, vimos um aumento do número de mulheres na direção; realizadores negros, negras, indígenas e LGBTQIAPN+ emergiram com força; cineastas vindos das periferias e territórios distantes das capitais sudestinas também ajudaram a compor um novo mapa do cinema brasileiro; no campo das ideias, as novas epistemologias não brancas e não ocidentais realizaram intervenções que geraram mudanças substanciais nas ideias e nos agentes do campo audiovisual, novas universidades e cursos audiovisuais se consolidaram, a política de cotas nas universidades e a reserva de vagas nas políticas públicas de cultura (em especial no audiovisual) também deram, às grandes maiorias minorizadas no processo social, acesso à universidade e às ferramentas de produção cultural, ainda que os enfrentamentos econômico-políticos necessários contra os oligopólios de mídia e a hegemonia do mercado estrangeiro não tenham sido efetivados. A curadoria nas artes e no cinema também ascendeu como uma plataforma política de intervenção no circuito da circulação de ideias, filmes e pessoas. Tudo isso reconfigurou profundamente o campo audiovisual. Passamos por um golpe, por tentativas de demolições institucionais, por destruição de políticas públicas, por genocídios, pela vulgarização absoluta do debate político, pelo negacionismo científico. Um aceleracionismo do “fim do mundo” que queria fazer terra arrasada para começar do zero.

                Os filmes deste ano da Mostra Aurora que foram exibidos na 27ª edição mineira, e que teve como vencedor Lista de Desejos para Superagui, de Pedro Giongo, trazem consigo as marcas desse mundo fraturado. Como nas edições anteriores, não há homogeneidade nas formas dos filmes, nos seus assuntos e nos seus estilos. Cada um  propõe gestos distintos, herda e retrabalha ao seu modo traços de diferentes tradições do cinema, sedimenta a influência de outras artes, metaboliza no seu corpo estético elementos da vida e do mundo. Ou seja: a busca poética de cada um diz respeito ao seu tempo histórico, seu lugar, seu elã experimental que transfigura um sentimento de mundo.

                Eu Também Não Gozei, de Ana Carolina Marinho, é uma epopeia pessoal e solitária de Letícia, uma atriz que fica grávida e procura os quatro possíveis pais que driblam a responsabilidade alegando não terem gozado – ela, por sua vez, também não gozou. Esses quatro homens sem rosto, essas quatro ausências se afiguram não só como fantasmas, mas ausências originárias. Com tema e material delicado, a câmera tenta encontrar a distância justa para filmar uma gravidez solitária e uma maternidade solo. O limite entre o melodrama e um estudo de caso documental se dá em uma dinâmica cênica que, frente às situações limites de Letícia, escolhe estar junto com ela ou tomar uma distância quase “clínica” para evitar o dramatismo anedótico. Não é exatamente uma câmera que olha e faz juízo, mas uma câmera que toma proximidade de uma experiência.

                Maçãs no Escuro é uma ficção, mas com matéria e uma condição “acidentada” do documentário. Seu caráter ficcional não está equidistante do temperamento documental e experimental de uma linha brasileira que vai de Ozualdo Candeias, passa pelo cinema popular nordestino (como os cineasta de Picos, Piauí, Dedé Rodrigues e Cícero Filho), chegando a Lincoln Péricles. Tiago Neves radicaliza o experimento mostrado na Mostra Aurora anterior com Cervejas no Escuro, e nos oferece um inventário de modos, renovando a tradição do cinema de invenção brasileiro – marcado por um traço de transitar entre formas e registro diferentes numa mesma obra. O “escuro” é esse lugar do imprevisível, onde as fórmulas duram pouco, e em seguida passamos para outra numa fome de tudo, que é igualmente popular, que emana da rua e conjuga com isso uma imaginação radical. As convenções do documentário, do teatro e da dramaturgia são matérias de microimplosões constantes que o filme costura, sem nunca se afastar do seu núcleo, fiel à própria mutação. A experiência da travessia centro-periferia na cidade de São Paulo é mote de encontros de alteridades infinitas, e o filme multiplica isso com graça e precisão.

                Já veteranos da Mostra de Tiradentes, onde estiveram com seus curtas, Lucas Camargo de Barros e Nicolas Thomé Zetune aportam no Aurora com O Tubérculo, um filme que lembra os petardos da No Wave nova-yorkina e do super-oitismo brasileiro dos anos 70, não só pela textura fantasmática do Super-8 e por um humor performático na imagem e no trabalho sonoro, mas por uma espécie de resposta debochada e antinormativa à imagem de seu tempo. Só que o movimento do personagem de O Tubérculo é o oposto daqueles do underground punk cosmopolita da No Wave (em especial Vivienne Dick) e distinto da vanguarda do Super-8 brasileiro: temos um retorno à província, com piseiro e forró. Um filme queer, de um humor queer, em direção ao interior agrário a bordo de um carro agroboy. As diferentes intensidades e uma certa patologia constitutiva (comum aos outros filmes dos diretores) fazem de O Tubérculo uma peça absolutamente rara no cenário contemporâneo.

                A personagem de Sofia Foi, de Pedro Geraldo, compartilha com o protagonista de O Tubérculo um desajuste com o mundo. Sofia é tatuadora e sabemos que está às voltas com algo (uma tragédia) que não é facilmente visível, mas é latente. O filme aposta na espacialização do tempo: não há “vazio existencial formalista”, há a opacidade do que está em jogo para Sofia que se mistura ao breu noturno do cenário modernista da FAU (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP) e da Cidade Universitária. Para aceitar a experiência do filme, é preciso suspender as expectativas e deixar o filme fazer suas proposições. Não é um filme sobre morte, mas sobre a vida vista de tão perto que temos a impressão, como na pintura, que vemos mais suas texturas (em um certo grau de abstração) do que a totalidade de uma figura. É nesses detalhes que talvez resida o enigma de Sofia, personagem e filme.

                Como afirmação da vida Not Dead, de Isaac Donato (vencedor da 24ª edição da Aurora com Açucena) é um filme sobre a sobrevivência da política a partir de fragmentos de um cotidiano entre o trabalho e a opção punk de um grupo de homens negros de meia-idade. Um filme raro no retrato de uma comunidade negra hoje e fala de raça, classe, política, sem precisar de nenhuma frase feita. O tempo do filme escorre lentamente com um ritmo de rio que, entre um obstáculo, um desvio e outro, faz seu caminho sem pressa, distinto do tempo célere e automatizado. A ideia de resistência punk (ou seja: o avesso da forma e do tempo do poder) aqui se faz sem estardalhaço, mas com energia. Not Dead é paciente: não diz de saída a que veio e não procura fazer performance de desempenho formal, mas é sereno e preciso. Tem em si essa crença no trabalho, no ofício, dos personagens e do filme também. É um filme de beleza (viva e) escondida.

                A beleza discreta e evidente está também no vencedor, Lista de Desejos para Superagui, de Pedro Giongo. É o filme do pescador Martelo e de sua comunidade, é um filme que se dá entre o mar e o tempo. A memória do passado, a materialidade do presente que se impõe e a expectativa do porvir estabelecem uma temporalidade rara, algo secreto e sussurrado, mas aberto e intenso. A temporalidade do filme de Giongo é como o mar que vemos, com um vaivém de ondas, mas com uma constância, mas sempre em movimento e com pequenas, mas significativas, alterações.Como um filme de resistência ao modelo sistemático do cinema industrial (na organização do seu tempo), ele pega um caminho muito raro hoje, num certo classicismo tardio, em que a matéria inspira a forma, sem nostalgia, sem retórica, mas com certa firmeza. São raros esses filmes narrativos que não nos pedem nada, mas que afirmam uma convicção, muito concreta, muito mundana, nessas imagens e nesse mundo (e nas imagens desse mundo). O filme tem curiosidade e cuidado com aquilo que filma.

                Por fim, Eros, de Rachel Daisy Ellis, é um curioso desafio de voyeurismo e exibicionismo. Vê-se menos sexo (que se vê também) e mais o entorno do que acontece naquela que, hoje, é uma das mais importantes instituições do país: o motel. O filme de Ellis se atém ao gesto de dar a câmera para que personagens diversos (dos mais jovens aos mais velhos, dos homo aos heteroafetivos) filmem sua experiência dentro de um ambiente destinado, a princípio, ao sexo. O que surge disso é uma espécie de estudo sociológico desse local privado, em que é possível adentrar a intimidade dos parceiros românticos para muito além dos sentidos eróticos. No motel, os casais jantam, conversam, assistem a televisão, discutem comportamentos religiosos, fogem das noites mal dormidas com filhos pequenos e, às vezes, fazem sexo. Eros é um passeio por uma intimidade velada, quando não constrangida com o aparato fílmico, mas que revela pouco a pouco a pessoalidade humana de cada um dos sujeitos que se dispõe a aparecer nu ou seminu com um parceiro, a se mostrar pro mundo não apenas no público, mas também no privado, na contramão do que se esperaria de um filme erótico à primeira vista. Rachel Daisy Ellis cria um ecossistema robusto, através das imagens feitas com aparelhos diversos, costurando esses relatos em uma obra que não apenas contrapõe preceitos, como estabelece novos caminhos nas discussões de erotismo, sexualidade e afeto.

Francis Vogner dos Reis
Juliano Gomes
Tatiana Carvalho Costa
Curadores

Rubens Fabricio Anzolin
Curador assistente